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DISCERNIMENTO COMO PROCESSO pt 1

14/09/2020



Pe. José Laércio de Lima.sj1



1.      O Discernimento espiritual e base humana


      Se queremos falar sobre o Discernimento Espiritual, devemos partir do ponto basilar, que é a necessidade da prática da oração pessoal e de quem está no processo de amadurecimento humano. Esses dois pré-requisitos capacitarão aqueles que desejam se deixar mover pela voz do Senhor. O cotidiano será o lugar do encontro dessa vontade, basta ter os ouvidos atentos, abertos ao que Deus já fala constantemente. É um equívoco pensar que o discernimento profundo, que busca encontrar a vontade de Deus, pode ser feito de qualquer modo e a qualquer custo.

        A oração pessoal e a maturidade humana, junto com uma metodologia, capacitam o exercitante para discernir a vontade de Deus. Isso não significa aprisionar o Espírito, mas ordenar a nossa alma, pois já sabemos que, se não cuidarmos dela, afinando-a como a um instrumento musical, ela não será capaz de dar o tom na sinfonia da nossa vida. Por isso, discernir é uma decisão difícil, requer trabalho, e nos pede coragem, maturidade. Podemos lembrar-nos do exemplo de Inácio de Loyola, que passou a vida toda sendo afinado, como a um instrumento; o seu coração, alma, sentidos precisaram ser ordenados, "domados", treinados para melhor escutar a Deus.

    Todo o processo de caminhada e peregrinação na vida de qualquer pessoa, seja interior, seja exterior, necessita ser vivido como processo que nos forma, para reconhecer a voz de Deus no cotidiano, no encontro com as pessoas, isto é, no mundo. Somente quando crescermos na capacidade de perceber "Deus diante dos olhos", aquele que age, trabalha e atua em todas as coisas, perceberemos que encontrar Deus é mais fácil do que imaginamos. Porém, as partes mais difíceis no processo de discernimento são: primeiro, encontrar a sua vontade entre tantas; e segundo, sustentar na vida pessoal a vontade de Deus. Isso, porque se o encontramos de verdade, Ele nos fala; ao nos falar, devemos responder à altura.

    Se não temos estrutura humana, se a nossa história pessoal ou realidade social está a todo momento trabalhando contra nós, certamente será ainda mais difícil sustentar o resultado de qualquer discernimento, como fruto da vontade de Deus. Dessa forma, torna-se essencial a tomada de consciência de influências que sofremos, que nossas histórias sofrem, e das condições que temos hoje de colocar em prática, as decisões que tomamos guiadas pelo Espírito de Deus.



2.      Quando podemos fazer discernimento espiritual?


       Pode-se fazer discernimento para tudo? Sim e não, como diria o nosso Pe. Libânio. O ato de discernir pode ser usado como sinônimo de fazer escolhas, então a resposta é sim, porque a vida é feita de escolhas. Porém, nem todas as vezes que falamos em discernimento, estamos falando em discernimento espiritual. Sendo assim, muitas escolhas que fazemos não estão ligadas à opção fundamental das nossas vidas. Todavia, é na simplicidade do dia a dia, mediada pela oração, pelo exame de consciência, pelo diálogo espiritual e, para quem pode, pelo acompanhamento espiritual, que mora a oportunidade de discernir, para encontrar a vontade de Deus. Esse processo de silêncio, oração pessoal e acompanhamento pessoal nos ajudam a tirar as cinzas dos nossos olhos e do nosso coração, tirar as cinzas de tantos equívocos que fazemos hoje; partes do nosso passado morto, mas que continuam, às vezes, a nos incomodar, tirando a nossa liberdade e capacidade de lucidez, para ver o presente e o futuro.

         Papa Francisco nos ajuda, quando fala na Gaudete et exsultate que podemos viver dispersos, perdendo o foco da vida e, assim, perdendo a capacidade de verdade, discernir e encontrar a vontade de Deus, pois pode ser que aquilo que aparece como novo, na verdade, é uma "novidade enganadora do espírito do mundo ou do espírito do maligno" (GE 168).

         Hoje em dia, tornou-se particularmente necessária a capacidade de discernimento, porque a vida atual oferece enormes possibilidades de ação e distração, sendo-nos apresentadas pelo mundo, como se fossem todas válidas e boas. Todos, mas especialmente os jovens, estão sujeitos a um zapping constante. É possível navegar simultaneamente em duas ou três telas e interagir, ao mesmo tempo, em diferentes cenários virtuais. Sem a sabedoria do discernimento, podemos facilmente transformar-nos em marionetes, à mercê das tendências da ocasião (GE 167).

      Sendo assim, a "mundanidade espiritual" pode ser uma realidade em nosso modo de tomar decisões e de influenciar a caminhada cristã, quando valorizamos mais as aparências das coisas do que a verdade que nos habita. Santo Inácio nos alerta para esse olhar profundo que é "ter Deus diante dos olhos", ou seja, desde a nossa intimidade, deve brotar a capacidade de olhar a realidade com a ótica de Deus. O modo como Deus nos olha é profundo, é salvação, desde sempre e para sempre, e nada impedirá a sua salvação (Eclesiástico 39,12-31). Por conseguinte, a capacidade de enxergar as coisas com um olhar diferenciado e profundo vai ajudar a encontrar a vontade de Deus no cotidiano, pois é isso que buscamos na vida, fazer tudo o que ele nos disser (Bodas de Caná/Jo 2,1-12).


3.      O Chão da juventude


      O Discernimento Espiritual é um trabalho incansável, que nos pede constante exercício interior pessoal. Desse modo, é preciso ver a terra, o chão de quem faz o discernimento, a fim de perceber se substrato, alicerces, isto é, condições de sustentar a decisão tomada. Quando falamos, por exemplo, do Discernimento Espiritual na vida das juventudes, percebemos que há uma parte da juventude que não ousa sequer sonhar, pois é impedida a todo instante. Em outros casos, não há horizontes para os sonhos, há apenas ilusões. Para alguns jovens, o máximo que conseguem sonhar é ser um(a) cantor(a) famoso(a) ou um(a) jogador(a) de futebol. Mas lhes faltam horizontes para sonhar com algo que os transcenda.

       Aí está o perigo, os sonhos muitas vezes são básicos, como trabalho e realização, porém esses "sonhos" não deveriam ser sonhos, pois todos deveriam ter acesso a isso. Muitas vezes, há apenas a ilusão que ocupa a mente e o coração de muitos jovens. Essa ilusão é a de que a felicidade baterá à sua porta, leia-se aqui a fama. Para isso, alguns estão dispostos a tudo. A vulgaridade se mistura com o cotidiano das criaturas que perambulam pela vida, quase que sem alma. Essa realidade descrita não é a totalidade, mas diz respeito a uma considerável parcela das juventudes. Fica difícil compreender a circunstância, se a observarmos desde uma visão acadêmica universitária, ou desde os balcões de alguns dos grandes teólogos que são doutores em teologia, mas analfabetos em humanidades e até mesmo em desumanidades.

       O chão das juventudes, lá de onde eles partem para tomar as decisões mais profundas de suas vidas, está marcado pela droga, pelo sangue, especialmente dos pobres. O chão das juventudes é o mesmo das cadeias que geram injustiça, dos cárceres que geram violência, morte, dor, dos transtornos profundos na alma e na vida de quem passa por lá.

        É preciso considerar as juventudes, considerar o chão das juventudes, o coração das juventudes. Às vezes, corremos o risco de falar para nós mesmos, sem considerar a realidade daqueles jovens, dos quais não temos acesso. O nosso olhar não deve ficar condicionado aos jovens da Igreja, das nossas sacristias. Esses jovens que são bons, santos, e que trazem elementos vocacionais, aqueles a quem muitas vezes nós incensamos e incentivamos, estão também marcados pela vida de milhões de jovens que não conseguem planejar a sua vida, fazer um projeto de vida; muito menos discernir a vocação. O chão das nossas juventudes é terreno minado e marcado pelo abuso sexual dentro da família, pelo assédio da sociedade, daí que ao discernir a vocação e se perguntar pela voz de Deus que fala dentro de cada um, não podem ficar de fora a dor e a realidade que, muitas vezes, os nossos projetos e planos vocacionais não contemplam.   

       Não é difícil encontrar jovens que tenham uma reta intenção, um desejo profundo, porém que tenham uma terra frágil, sem raiz e sem consistência para assumir as próprias decisões. Esse elemento também é característica da sociedade atual, na qual vivemos, e que conhecemos por "sociedade líquida", "tempos líquidos", eu diria, corações líquidos.

       A ilusão do sucesso a qualquer custo aliena e esvazia as juventudes. Como falei acima, o sonho não consegue ir além da vida financeira, em detrimento da dimensão espiritual. Sem falar que na maioria das vezes, a vida espiritual também é alienante, especialmente quando não permite que o jovem veja em profundidade a realidade que o cerca. A espiritualidade não pode ser limitante, mas abrangente.

      Dentro da realidade atual, é importante que cada cristão crie uma relação com Deus, que podemos chamar de "verificação vertical"2, ou seja, uma experiência fundante, aquela que ninguém pode dar, tão pouco, ninguém poderá tirá-la. Contudo, será preciso que cada pessoa sinta, viva, experimente. Essa experiência fundante ajudará a que nos configuremos nos moldes culturais de nosso tempo, da mesma forma que nossos antepassados fizeram no seu.

         Logo, o caminho será ajudar a criar horizontes espirituais, desde o chão que pisa cada jovem, auxiliando-o a ser capaz de levantar o véu da realidade e, assim, crescerem em maturidade suficiente para assumir as decisões tomadas.